Resumo: O princípio da presunção de inocência norteia o ordenamento jurídico nacional e também a nível internacional, como pode ser observado através da leitura da Constituição da República Federativa do Brasil e Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948. Nesse contexto, o presente artigo se propõe a trazer uma reflexão e análise acerca da execução provisória da pena em cotejo com o citado princípio e com o Pacote Anticrime - Lei nº 13.964/2019-, bem como o entendimento jurisprudencial acerca da temática.
Palavras-chave: Princípio da presunção de inocência. Pacote anticrime. Execução provisória da pena.
Sumário: Introdução. 1. Considerações sobre o princípio da presunção de inocência. 2. Execução provisória da pena e o entendimento do STF. 3. O pacote anticrime e a execução provisória da pena no rito do Tribunal do Júri. Considerações finais. Referências bibliográficas
Introdução
A temática abordada no presente artigo traz uma reflexão sobre a execução provisória da pena, em cotejo com o princípio da presunção de inocência. O estudo aqui proposto objetiva realizar uma análise do tema e do entendimento jurisprudencial correlato.
Nesse contexto, o assunto é abordado à luz dos conceitos aplicáveis, considerando os princípios e valores consagrados pela Constituição Federal de 1988 e pelo direito internacional, coletando-se informes e concepções oriundos da legislação e doutrina relacionadas ao assunto.
1.Considerações sobre o princípio da presunção de inocência
Sabe-se que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 consagrou o princípio da presunção da inocência ao dispor, em seu artigo 5º, inciso LVII, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Nas palavras de Cesare Beccaria, em sua obra Dos delitos e das penas, “um homem não pode ser chamado réu antes da sentença do juiz, e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública após ter decidido que ele violou os pactos por meio dos quais ela lhe foi outorgada”[1].
Nesse contexto, o princípio da presunção da inocência, também conhecido como princípio da não culpabilidade, determina que ninguém deverá ser declarado culpado antes do término do devido processo legal, considerando este último como aquele processo em que tenham sido assegurados ao acusado a ampla defesa e o contraditório.
Em sede de Tratados Internacionais, esse princípio é consagrado na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, ao dispor, em seu artigo 9º, que todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei.
Outrossim, a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 também dispõe, em seu artigo 11.1, que todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.
Tal princípio reflete na regra do ônus da prova do direito processual penal, recaindo na parte acusadora o ônus de provar a culpabilidade do acusado, acima de qualquer dúvida razoável, não se exigindo do acusado o ônus de provar a sua inocência. O princípio reflete ainda na regra de tratamento, considerando que a regra é que o acusado responda ao processo penal em liberdade, sendo a restrição da liberdade uma exceção que precisa ser devidamente justificada, cumpridos os requisitos estabelecidos pela legislação.
Nesse contexto, esclarecedora a lição de Aury Lopes Júnior ao dispor que o Poder Público está impedido de agir e de se comportar em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao acusado, como se estes já houvessem sido condenados, definitivamente, enquanto não houver o fim do processo penal[2].
2.Execução provisória da pena e o entendimento do STF
A respeito da execução provisória da pena no contexto do princípio da presunção de inocência explicitado acima, o doutrinador Renato Brasileiro de Lima é claro ao expor:
“Por força do dever de tratamento, qualquer que seja a modalidade da prisão cautelar, não se pode admitir que a medida seja usada como meio de inconstitucional antecipação executória da própria sanção penal, pois tal instrumento de tutela cautelar penal somente se legitima se se comprovar, com apoio em base empírica idônea, a real necessidade da adoção, pelo Estado, dessa extraordinária medida de constrição do status libertatis do indiciado ou do acusado.”[3]
Nesse contexto, cumpre esclarecer que a temática da possibilidade de execução provisória da pena já sofreu algumas oscilações na jurisprudência pátria. No período entre os anos de 2016 até 2019 prevalecia no Supremo Tribunal Federal o entendimento de que não era necessário aguardar o trânsito em julgado da sentença condenatória, possibilitando-se, assim, a execução provisória da pena.
Nesse sentido, no dia 17 de fevereiro de 2016, ao julgar o HC 126292, O Supremo Tribunal Federal decidiu que era possível o início da execução da pena condenatória após a prolação de acórdão condenatório em 2º grau, o que não ofenderia o princípio constitucional da inocência. De acordo com o STF, o recurso especial e o recurso extraordinário, por não possuírem efeito suspensivo, mesmo que fossem interpostos, não impediriam a produção de efeitos da decisão recorrida, que poderia ser executada enquanto o recurso não fosse julgado.
Para o STF, considerando que os recursos cabíveis da decisão de 2º grau ao STJ e ao STF não se prestam a discutir fatos e provas, a presunção de inocência não impediria que, mesmo antes do trânsito em julgado, o acórdão condenatório produzisse efeitos contra o acusado, possibilitando, portanto, a execução provisória da pena. Nas exatas palavras do STF, “Em país nenhum do mundo, depois de observado o duplo grau de jurisdição, a execução de uma condenação fica suspensa aguardando referendo da Suprema Corte.”.
Ocorre que no dia 07 de novembro de 2019, ao julgar as ADCs 43, 44 e 45 (Ministro Relator Marco Aurélio), o STF passou a afirmar que a execução da pena só poderia ter início após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, posição essa que vigora até os dias atuais, quando não é possível a execução provisória da pena.
Dentre os argumentos utilizados para essa mudança de paradigma, estão a clara letra da lei, considerando o disposto no art. 5º inciso LVII da Constituição Federal e o disposto no art. 283 do Código de Processo Penal, que determina que ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou preventiva.
Nesse contexto, o STF entendeu que a Constituição não pode se submeter à vontade dos poderes constituídos nem o Poder Judiciário embasar suas decisões no clamor público, motivo pelo qual, a partir da citada data e até os dias atuais, passou a ser proibida a execução provisória da pena. Senão vejamos a ementa abaixo:
PENA – EXECUÇÃO PROVISÓRIA – IMPOSSIBILIDADE – PRINCÍPIO DA NÃO CULPABIIDADE. Surge constitucional o artigo 283 do Código de Processo Penal, a condicionar o início do cumprimento da pena ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória, considerado o alcance da garantia versada no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, no que direciona a apurar para, selada a culpa em virtude de título precluso na via da recorribilidade, prender, em execução da sanção, a qual não admite forma provisória (STF – ADC: 43 DF 4000886-80.2016.1.00.0000, Relator: Marco Aurélio, Data de Julgamento: 07/11/2019, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 12/11/2020)
É importante frisar que essa decisão do STF, proferida em Ação Direta de Constitucionalidade, que declarou a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, de acordo com a doutrina majoritária, possui efeitos vinculantes e erga omnes.
No mesmo sentido, temos a Súmula 643, aprovada pelo Superior Tribunal de Justiça em 10 de fevereiro de 2021, que assim dispõe: “A execução da pena restritiva de direitos depende do trânsito em julgado da condenação.”.
3.O pacote anticrime e a execução provisória da pena no rito do Tribunal do Júri
Feitas todas as considerações acima acerca do entendimento jurisprudencial relativo à execução provisória da pena, cumpre esclarecer que a Lei nº 13.964/2019, conhecida como “pacote anticrime” acrescentou, ao artigo 492 do Código de Processo Penal, a possibilidade de execução provisória da pena no caso de a condenação pelo Júri resultar em pena superior a 15 (quinze) anos de reclusão.
Nos exatos termos do inciso I, alínea “e”, do mencionado dispositivo legal, o juiz presidente do Tribunal do Júri, no caso de condenação a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão, determinará a execução provisória das penas, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos.
Diante de todos os argumentos trazidos neste trabalho, e, em especial, diante do entendimento do STF sobre o assunto, percebe-se que a alteração legislativa é de questionável constitucionalidade, considerando que mitiga o duplo grau de jurisdição, além de representar uma violação ao princípio da presunção de inocência.
Segue abaixo transcrição das esclarecedoras lições de Paulo Queiroz sobre o assunto:
"além de incoerente e ilógica, é claramente inconstitucional, visto que: 1) ofende o princípio da presunção de inocência, segundo o qual ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (CF, art. 5°, LVII), razão pela qual toda medida cautelar há de exigir cautelaridade, especialmente a prisão preventiva; 2) viola o princípio da isonomia, já que condenações por crimes análogos e mais graves (v.g., condenação a 30 anos de reclusão por latrocínio) não admitem tal exceção, razão pela qual a prisão preventiva exige sempre cautelaridade; 3) estabelece critérios facilmente manipuláveis e incompatíveis com o princípio da legalidade penal, notadamente a pena aplicada pelo juiz-presidente; 4) o só fato de o réu sofrer uma condenação mais ou menos grave não o faz mais ou menos culpado, já que a culpabilidade tem a ver com a prova produzida nos autos e com os critérios de valoração da prova, não com o quanto de pena aplicado; 5) a gravidade do crime é sempre uma condição necessária, mas nunca uma condição suficiente para a decretação e manutenção de prisão preventiva. Como é óbvio, a exceção está em manifesta contradição com o novo art. 313, §2º, que diz: Não será admitida a decretação da prisão preventiva com a finalidade de antecipação de cumprimento de pena."[4]
Considerações Finais
A partir de uma análise acerca realidade que permeia a execução provisória da pena, pode-se observar a importância da evolução do entendimento jurisprudencial sobre o tema, em especial ao se verificar que o princípio da presunção da inocência é claramente consagrado não só na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, mas também a nível de Tratados Internacionais.
Dito isso, constatou-se que a alteração introduzida pela Lei nº13.964/2019 - “Pacote Anticrime” - vai na contramão da evolução jurisprudencial, representando um retrocesso no nosso ordenamento jurídico e deixando clara a necessidade que o Supremo Tribunal Federal garanta a eficácia ao duplo grau de jurisdição, ao sistema recursal como direito de todo acusado, além de resguardar o princípio da presunção da inocência ou não-culpabilidade.
Referências bibliográficas
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único – 8. Ed. Ver., Salvador: Ed. JusPodivm, 2020.
BECCARIA, Cesare Bonesana, Marchesi de. Dos delitos e das penas. Tradução: Lucia Guidicini, Alessandro Berti Contessa. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. II. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009.
DE CARVALHO, L.G. Grandinetti Castanho. Processo Penal e Constituição. Princípios Constitucionais do Processo Penal. 4ªed. Rio de Janeiro. Lumen Juris. 2006.
QUEIROZ, Paulo. Disponível em: https://www.pauloqueiroz.net/a-nova-prisao-preventiva-lei-n-13-964-2019/. Acesso em: 03/10/2021.
BRASIL. LEI Nº 13.964, DE 24 DE DEZEMBRO DE 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13964.htm Acesso em: 03 out. 2021.
BRASIL. DECRETO-LEI Nº 3.689, DE 3 DE OUTUBRO DE 1941.CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.Rio de Janeiro, 03 de outubro de 1941. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decretolei/del3689.htm.Acesso em: 25 set. 2021.
[1] BECCARIA, Cesare Bonesana, Marchesi de. Dos delitos e das penas. Tradução: Lucia Guidicini, Alessandro Berti Contessa. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 69.
[2] LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. II. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 47/48.
[3] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 8. ed. rev. ampl. e atual. – Salvador: Ed. Juspodivm, 2020. P. 49/50.
[4] QUEIROZ, Paulo. Disponível em: https://www.pauloqueiroz.net/a-nova-prisao-preventiva-lei-n-13-964-2019/. Acesso em: 03/10/2021.
Graduada em Direito pela UFRN. Pós Graduada em Ciências Penais pela Universidade Cândido Mendes.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Maryana Ferreira Vieira. O princípio da presunção de inocência e a execução provisória da pena Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 jul 2022, 04:11. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /58906/o-princpio-da-presuno-de-inocncia-e-a-execuo-provisria-da-pena. Acesso em: 28 dez 2024.
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